quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

arqueologia - galeria copasa - Belo Horizonte, 2007



Ontem fui a duas exposições: Arqueologia, de Marcelino Peixoto, na Copasa e Reserva II, continuação do Projeto Território II, oficina orientada por Laís Myrrha e Cinthia Marcelle, no Museu Mineiro. Da primeira, saí com meu catálogo,da segunda com um post-it.
Um dos ''post-it'' que cobriam aimagem de São Miguel Arcanjo.
São duas propostas distintas, mas guardam algo em comum: os espaços discursivos de ‘arqueologia’ e de ‘reserva’ são bem próximos. O que fazer, senão forçar uma aproximação pela via da linguagem? A primeira palavra que vem à mente é escavação. E, dela, soterramento.
Oque há de escavação e de soterramento nos trabalhos de Marcelino? São trabalhos de uma genealogia bem óbvia: formas aleatórias servem de base para um incessante trabalho de contorno e sobreposição. Enquanto o artista acumula camadas dessa tinta transparente e fina que é a aquarela, parece escavar em si suas próprias questões. Certa vez, em tom de brincadeira, falei para ele que esse tipo de compulsão é uma espécie de psiconeurose de defesa; eu estava
relacionando seu labor repetivo com a pulsão de morte. Automaton e tiquê, entretanto, relacionam-se a algo inassimilável, a um eterno retorno diante do real, o que não me parece o caso, dadas as múltiplas implicações da translucidez. Jogando com a palavra, trans-lúcido poderia ser para além de lúcido, para além da posse de suas faculdades mentais. Acontece que, à forma automática inicial, parece suceder um processo construtivo, muito distinto dos procedimentos surrealistas, por exemplo. E o que me permite essa conclusão é justamente a translucidez da tinta: não me parece haver segredo ou repressão, não ocorre uma operação divergente do princípio do prazer: o que ele escava em si é o prazer da tinta e da cor – foi assim que compreendi primeiro ouvindo-o, depois olhando. Portanto, aí, soterramento é escavação, trazer à luz, abrir.
E o mesmo acontece com a instalação no Museu Mineiro. A imagem soterrada por post-its
se torna mais visível justamente porque invisível. Na instalação anterior, com percianas cobrindo os quadros, já havia ocorrido isso. A interdição causa uma necessidade de aproximação; nosso olho busca focar dentro, atravessar a persiana e atravessar o vidro opacificado. O próprio conceito negativo de museu como um lugar que tira do invisível e leva para o invisível, para a reserva, é usado a favor da visibilidade. Essas camadas que os artistas da oficina vêm sobrepondo ao acervo do Museu Mineiro são também translúcidas.
Mas a escavação não pára aí. O conteúdo das notas foi colhido em uma dissertação
sobre a conservação da obra. Em minha pesquisa PinturaCatálogos, abordo a necessidade de criar um tipo de catálogo que mostre os subterrâneos do museu e principalmente as operações
“endoscópicas”, típicas da conservação. Nada melhor que colher o lembrete “Fig. 53 – início da limpeza das asas”. E, ao fazê-lo, abrir a tumba (como diria Didi-Huberman); mas com a certeza de que – como escreveu Carlos de Brito e Mello sobre o trabalho de Marcelino: “o trabalho arqueológico não consegue encerrar-se com a abertura da tumba.” Após essa aproximação forçada de duas exposições tão díspares, visitadas na mesma noite, só me resta como alternativa:
Uma aproximação forçada, mas necessária.
Hélio Nunes




















Deslizar o tempo

Diante da sucessão de acontecimentos interpostos, sobrepostos e acidentais que conduzem as linhas produzidas por Marcelino Peixoto, somos apresentados a uma modalidade singular de arqueologia: aquela cujos restos não se fixam em um espaço previsto e demarcável. Móveis, fluentes e deslizantes, os objetos de escavação arqueológica são, aqui, elaborados pelo próprio ato de demarcação.
Nosso olhar é desafiado, assim, a alcançar velocidade para acompanhar a excitação máxima da cor e receber toda a quantidade de afetos que, produzidos a partir do trabalho do artista, permanecem atuantes no suporte. Nossa primeira sensação é de irresistível estupor – não porque ali tenha faltado a vida, mas porque ela tenha excedido. Os derramamentos provocados pelo encontro das linhas também nos vitimam.
Dilata-se e aprofunda-se, vertiginosamente, o espaço. Organizadas em diversas camadas e direções, as imagens de Arqueologia promovem a assimilação de um plano por outro. As inscrições mais antigas estabelecem uma base que se arrasta: ora diluem-se, ora ressurgem nas concentrações mais recentes de tinta, ora transbordam na superfície. A articulação de formas fixas não resulta, entretanto, em padrões, mas em uma permanente modulação capaz de fazer tremer o campo de visibilidade.
Inevitável arrebatamento que a proximidade instaura. As diferentes profundidades das linhas reforçam nossa presença em meio aos corpúsculos, tecidos estratificados, mitocôndrias, membranas... A microscopia pleiteia dimensões superiores, alargadas, ampliadas, e a coloração compõe um organismo que delira.
Reconhecemos em Arqueologia a ação de um mecanismo semelhante ao da memória. Ao produzir nas imagens seu próprio passado, articulando-o ao presente do mais recente gesto do artista, o trabalho arqueológico não consegue encerrar-se com a abertura da tumba. A dimensão passada das imagens precisa ser compreendida não como um estado de tempo, estancado e definido cronologicamente, mas como movimento: as linhas passam, a imagem passa incessante.
Conhecer o trabalho de Marcelino Peixoto torna-se, assim, o instante mais imediato de uma atuação temporal que se distende infinitamente e recua até um ponto de invisibilidade. Se não podemos atingi-lo apenas por um exame da forma, procedemos tal captura como nosso espírito que se expande, desliza, treme e penetra. É o que nos reserva o futuro dessas imagens, promessa feita pelas linhas ao deixar o suporte em direção ao resto do mundo.
Talvez estejamos apenas e ainda estuporados diante da beleza. Talvez tenhamos – com as imagens – deslizado para além.


Carlos de Brito e Melo

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